ARIMANDÍA

Red wine, white couch

I don’t know exactly how, but I had already seen all that scene happening before: she going down the stairs wearing her highest heels, that black dress, wet hair, crazy bracelets on her arms, the finest jewelry she had, dressing herself to set me on fire, saying, only in her mind, but also through her eyes, something like that Brazilian song we would listen during long nights together: “I want to see what you do when you notice I can do very well without you”. What a beautiful woman, that woman I have been married to since my twenties and now, three decades later, is going down not only the stairs, but also to another life, one where another person is waiting to see her heels, her dress, her hair and arms and thinking about what a beautiful woman she is. Nothing out of our plans. We discovered we love each other a long time  ago and, at the same moment, we knew we suddenly could be passionate for someone else. It could happen to us, of course. All these years I spent afternoons and nights with girls, a lot of them, and, in spite, I never thought I would be more than some hours with them — on the contrary, I usually came back home to see my real woman, my wife since my youth, waiting for me to end one more day. Our signal was the wine. Not only the wine: its fiery red, almost brown, invading the pure white of our couch. When one of us decided to do it, to throw wine on that couch, so all the thing had happened — she or me firing in passion for another one and the definitive end of us as that strange couple. And I had seen that scene before too, her glass taking its direction to the couch in a slow pace, the wine (I bought in Portugal) anxious to catch that virgin white, a kind of red-white, sad scene happening first as a fear and then as a fact. And so she took her glass, looked at me with her also red eyes and confirmed I was getting the whole thing. So she closed the door and left the room making her heels stomp the rocks of the street. In the silence of the night, minutes after she got her way to somewhere, I looked around and noticed the first scene I hadn’t seen before during all that time: the stained white couch in the middle of room, poor couch, singing in a shy voice: “I want to see what you do…”.

NOTAS DA PATERNIDADE XIII (ou sobre os camelos)

— Aos dois anos, o dispositivo do temor parece pronto, mas o do medo ainda mal começou a funcionar. É assim que as crianças prosseguem além dos seus limites, cruzam suas próprias fronteiras sem depender da confiança em um outro para salvá-las, nem sempre tão seguras. Ainda assim, arriscam mais do que hesitam. O temor adia o ímpeto, mas não o impede. O medo é a antecipação metafísica de qualquer coisa. Por quanto tempo esse desequilíbrio permanece? Na perspectiva do futuro, talvez a vida inteira: ora temendo mais do que se deveria ora menos amedrontados do que precisávamos estar.

— Nessa fase da vida, não há argumento que equilibre os dois sistemas: para as crianças, dizer que elas “vão se machucar” ou definir uma experiência momentânea como “perigosa” são palavras ao vento. O fato é definitivo — e, na imediatez do presente, nada é tão arriscado. As histórias começam a pulular à distância: um garoto que quebrou um braço por cair da cama, ou o outro que se perdeu dos pais por 20 minutos numa feira livre, ou a bebê que tomou água sanitária. Viver é dionisíaco, os afetos são guias, os estímulos são totais, elas o sabem bem, e respondem apenas se machucando e cruzando os perigos por dentro deles.

— Nós, pais, é que entramos no nosso próprio pêndulo: entre o temor-medo constante deste mundo e a beleza das manifestações da infância. É uma contradição: dentro de cada descoberta, uma ameaça. Eis é a história de todas as coisas.

— Mas, numa noite, numa única noite de janeiro, Flora não queria dormir. Luzes apagadas, livros do fim do dia lidos, ursinhos acomodados no colchão e ela, até então entregue ao sono, sussurrou numa voz baixa quando eu já estava quase no corredor: “Estou com medo, papai”. No silêncio do quarto, parecia o único sofrimento existente no mundo. Não era temor, mas sim suas engrenagens começando lentamente seu movimento — o medo como essa matéria fina que só existe na dúvida do que pode acontecer no minuto seguinte ou, pior, do que pode existir oculto na eternidade. Na nossa escuridão, eu a experimentava como a sujeição ao que não se sabe, e Flora só queria estar acompanhada do pai naquele lugar inóspito. Uma descoberta, uma ameaça. Voltei, pus minha mão sobre seus cabelos e disse, também baixinho, também incerto: “Não vai acontecer nada com você”.

— Diante do medo, e antes do temor, só há uma alternativa: a esperança.

NOTAS DA PATERNIDADE XII

— Andando pelas ruas da cidade, de qualquer cidade, eu consigo ver tudo o que você pode ser. Me exaspero num lapso, você menina, todos os dilemas do mundo, as tristezas que você inevitavelmente vai sentir, as contradições ao alcance das mãos, suas dores e as dos outros. Você, como eu menino, copiando os versinhos dos modernistas para te ajudar a entender. No outro lapso me conforto: você existe — e existir é isso, Flora, esse sábado à noite em que todas as coisas estão dispostas, da solidão à descoberta, esse gris em que o preto e o branco não se misturam, mas também se misturam, numa coleção eterna de outros lapsos. É miserável, mas é bonito.

— Andando pelas ruas da cidade, dessa cidade, eu desejo te ver sempre perto. Volto a me exasperar, porque os filhos são feitos para povoar a Terra, renovar as expectativas, prolongar as possibilidades, reinventar as próprias reinvenções deixando, ao mesmo tempo, uma parte do passado intacto. Nessa ânsia de refazer o mundo, os pais costumam ser apenas uma lembrança na parede. Logo chegará o tempo em que haverá em você todo o sentimento do mundo. Mas volto a me confortar, porque eu vi você na palavra (“Estou grávida”), no sorriso mais sincero da sua mãe, na excitação dos seus avós, nas roupinhas penduradas nas gôndolas, no berço cheirando à madeira nova, depois vi você ser sensível ao primeiro sol do dia, e então cruzar o corredor da escola convicta, dizer seus desejos, se aninhar no nosso colo como uma mulher madura. Os filhos também são feitos para nos povoar por dentro.

— Andando pelas ruas da cidade, da nossa cidade, eu almejo desobedecer o tempo — e viver ele inteiro ali, só ali, caminhando com você aleatoriamente pelas ruas do bairro, perseguindo os cachorros, dando nomes às coisas, se impactando com a altura dos prédios, conversando sobre algum assunto até que um desconhecido apareça e te chame de “mocinha”, para você ficar o resto da noite repetindo “mocinha”, “mocinha”, quase como se estivesse ansiosa pela sua mocidade. Me exaspero e me conforto em paralelo, porque sei que você irá ao mundo e, no mesmo movimento, vai estar aqui andando comigo sem destino pelas ruazinhas do bairro.

O amor é cego (e intenso)

No Rio de Janeiro

Todas as placas de trânsito indicam, ansiosas, que em algum momento se chegará a Copacabana. Não há como evitá-la — e, então, só acontece. Ali, enfim, o Brasil encontra sua própria metáfora: o taxista presencia o menino furtar um celular e vocifera seu desejo inequívoco de espremê-lo na lataria do ônibus. Do outro lado, na calçada portuguesa, bolivianos regressam a sua terra ancestral agora para vender bugigangas aos turistas. Dois homens enriquecem solitários om o ouro alheio nas margens do forte enquanto, aos pés de Carlos Drummond de Andrade, um mendigo também decide dormir de costas para o mar. O sol das cinco horas é bonito, mas as pessoas sacam os celulares mesmo é para fotografar um pelotão militar que cruza a orla berrando seus cânticos de guerra. O antigo edifício do poeta é um dos poucos lugares onde ainda há silêncio. As placas de Copacabana passam a sugerir Botafogo, mas insisto no Leblon. Desço no número 234 da Carlos Góis e percorro lentamente um caminho imaginário de João: o Restaurante Degrau, alguma banca de jornais vinte e quatro horas, o Bracarense, uma velha galeria de lojas, as lanchonetes fundadas junto com a Bossa Nova. Acho que foi Ruy Castro quem disse que João Gilberto foi visto falando sozinho pelas ruas da Cinelândia antes de voltar a Juazeiro e reinventar a identidade do Brasil. Seu sonho era topar aleatoriamente com Drummond e levá-lo para o apartamento da Joaquim Nabuco. Já eu estou ali porque sonhara encontrar Caetano Veloso e lhe dizer que o tropicalismo é mais latino-americano que brasileiro — ou então que o amor é cego, mas também intenso, e que esse país só se ama ou se odeia, sem dialéticas. O Rio é incrível, me confessa Valter Hugo Mãe antes de desaparecer na multidão. As placas já me levam para o outro lado da montanha. Um carro para o trânsito para fotografar a porta monumental do Vivendas da Barra. Um policial se exaspera com o caos. No alto, cercado pelas casinhas do Cantagalo, pelas preces paralelas, pelos repórteres da The Economist e pelos helicópteros de voos rasos, o Cristo não desiste — de uma rua qualquer, na verdade, ele parece fazer o apocalipse se cumprir. Todo dia.

NOTAS DA PATERNIDADE XI

— Na beirada dos dois anos, palavras são mais coisas do que propriamente palavras. Um velho professor dizia o mesmo dos conceitos: são a caixa de ferramentas da vida. O que tem nome se repete, o que é provisório se ajeita e o que nunca foi nomeado ganha batismo momentâneo. Flora já percebe que o jeito inevitável de descobrir o mundo é chamando-o de muitos jeitos, convocando-o a reagir, provocando-o a se provar verdadeiro. Mas não é mais um punhado de sons que permite tê-lo por completo, como parecia até então. Do trem agora se espera… o trem. O nariz é só a saliência universal do rosto humano, assim como a flor se diferencia da planta por um tipo ainda não compreensível de beleza.

— Antes de tudo, palavras dizem mais sobre os outros do que dela mesma. São essa presença inequívoca das avós numa manhã de sábado, a lista mental dos amigos da escola, o desejo desesperador pelo colo da mãe nas madrugadas, o desconhecido que se pendura no prédio vizinho ou o vendedor de sorvete. É também quando se descobre que as palavras são entrelaçamentos perfeitos de várias coisas cuja infinidade de combinações não dão conta da nossa complexidade, mas oferecem uma alternativa. Adicionar “colo” à “mamãe” tem um efeito imediato, tanto quanto colocar “quer” antes de qualquer outra coisa. As palavras são peças que vão se encaixando estranhamente.

— O maravilhoso mesmo, Flora, é o que dá para experimentar com elas: o desejo, a fome, o amor, o desconsolo, a alegria, a exasperação, a ansiedade, o orgulho, a vaidade, a miséria, a solidão, o ápice, a ternura, a preguiça, o prazer, todas essas palavras que explicam o que podemos ser e, ao mesmo tempo, não explicam nada — porque se nos fazem sentir, também restringem o que pode ser sentido, mas não nomeado — ou o que eu sinto por você.

Asas do pensamento

Em Berlim

Entre a Kurfürstendamm e a Karl-Marx-Allee há menos afetos do que compreensões possíveis. Nenhuma me contempla. Talvez porque a filosofia já tenha explicado a impossibilidade de qualquer divisão definitiva. Nos dias ruins, Win Wenders encontrava alívio ao imaginar Berlim do alto, sem muros, e quando finalmente conseguiu vê-la, derrubou o anjo na fronteira de Kreuzberg. O Leonardo Lichote havia dito que o funk carioca nasceu com o Kraftwerk, e enquanto Nick Cave odiava os berlinenses noturnos, David Bowie fundia o rock no pop na margem com o Oriente. Um azul prussiano remenda definitivamente o céu antes da chuva diária das oito horas. Trinta e dois anos antes, nessa mesma hora, uma multidão também remendava a cidade. Os afetos irrompem mais do que a compreensão. Talvez porque a sociologia já tenha explicado a possibilidade das divisões definitivas. Na antiga fenda da Oberbaumbrücke, uma moça me entrega latinhas gratuitas de Coca-Cola, enquanto, diante do beijo soviético, migrantes tentam me convencer a comprar suas miniaturas de Trabants. Ninguém nota, mas uma estação fantasma passa misteriosa por nós no túnel entre Friedrichstraße e Stadmitte. Todas as linhas de trem param na Potsdamer Platz. A chuva fica mais forte. O azul permanece prussiano nos dois lados, realçando o vermelho dos socialistas e o amarelo das torres. Karl Marx e Friedrich Engels observam, calados, os turistas tocarem os seios de Elba na fonte de Netuno. Angela Merkel é vizinha de parede de Hegel. Um casal se beija na Marielle-Franco-Platz, não muito longe do lugar onde Damiel tomou café pela primeira vez. Gays e lésbicas do Vietnã caminham decididos pelos restaurantes turcos da Kottbusser Damm em direção ao fim da tarde. Não há mais viciados na estação onde Christiane F. viveu o livro, mas mendigos se enfileiram na porta da Zentrum am Zoo debaixo das mesmas colunas onde ela começou a se prostituir. Alguém me conta que é a história da desilusão da Alemanha Ocidental. A cidade ainda uníssona dividiu a África em cinquenta e quatro países arbitrários e, depois que a igreja Kaiser Wilhem foi bombardeada, colocou um Jesus negro sobre o altar. Debaixo dele, toca-se as quatro estações. Então, entre o Tiergarten e o Mauerpark, os afetos já se revezam com a compreensão. Todos querem me contemplar. Talvez porque não exista muros entre eles.

Lambada complicada

Em Belém (PA)

As piraíbas pulam dos barcos junto com os waraos. Ainda é madrugada em Belém. Não há sinos nem deuses — nem turistas nas margens do Ver-o-Peso —, só os pescadores e seus peixes, os waraos e seus desesperos, os urubus e seus restos. Do outro lado da baía, a noite insiste em escurecer tudo. As luzes das funerárias do Nazaré se encarregam de acender o dia. É quando, enfim, nossos dilemas mais profundos se revelam: a miséria, o desamparo, os índios, a violência, a terra, os racismos, o capitalismo tardio, a Amazônia, o bolsonarismo. São deles também que nossas respostas mais legítimas nascem: a comunidade, a cultura, os índios, a rua, o rio, a música, a vitalidade, a Amazônia, as relações cotidianas. Na grande floresta tropical do mundo, não há tropicalismo para explicar. Recorro à lambada complicada de Aldo Sena. Pilhas de madeira sobem obedientes pelas margens de Miramar. Uma mulher chora sozinha no templo de Sant’Ana. Do lado de fora, os guardadores de carros apostam que o Paysandu ganhará do Remo daqui alguns dias. Uma multidão espera pelo próximo barco para Abaetetuba enquanto outra embarca com calma para Carapajó. No caminho do Círio, as meninas ensaiam uma coreografia diante do celular, os casarões coloniais esperam ansiosos pela próxima procissão, um homem limpa o suor da testa antes de subir no ônibus. Do Maranhão irrompe uma chuva torrencial, construindo poças para as crianças de Guamá, mofando as varandas dos ricos e anunciando o fim da tarde no Norte até morrer, já garoa, na Guiana. No auditório da Universidade Federal do Pará alguém anuncia que a Amazônia é o futuro da humanidade. O outro lado da baía renova seu chamado: já é noite inteira na ponta definitiva do Brasil. As piraíbas pulam dos barcos junto com os waraos. É madrugada em Belém.

NOTAS DA PATERNIDADE X

— Antes da vaidade, como escreveu o profeta, vem a ansiedade. Alguém me explicou o motivo: o mundo dos bebês é só o que eles conseguem pegar nas mãos. Talvez seja uma síntese de tudo. A fé só é legítima se mover a montanha, a experiência pode ser total apenas quando experimentada de fato, o que o olho não vê, o coração não sente, o materialismo dialético explica a história(?). Flora, ao menos, faz a explicação ter sentido, procurando nas texturas das frutas, na sujeira dos parques, nos barulhos dos brinquedos, nas vozes alheias que surgem da rua e nos abraços dos pais o mundo agradável no qual ela já sabe como viver.

— Mas e o que não está no alcance das mãos? As canções de João Gilberto na hora do banho, o primeiro sol do outono pela manhã, a intensidade de uma frustração, o êxtase da demanda atendida, do olhar encontrado, a dor de uma partida momentânea, todos os mistérios ainda não compreensíveis — o funcionamento dos elevadores, o mecanismo dos interruptores de luz, o perigo do fogo. Talvez alguém explicaria do mesmo jeito: o mundo dos bebês é só o que eles conseguem sentir no corpo. Síntese de tudo, inevitavelmente. O que não sentimos, não existe.

— Flora, porém, encontra uma alternativa mais simples. Pega um punhado de palavras — que caberia nas suas mãozinhas — e, com elas, sai explicando as coisas ao redor, sensíveis ou não. “Neném” pode ser ela mesma, ou então os sorrisos dos outros, os bonecos no quarto, os cachorros na rua ou um pedido urgente de acolhimento. “Árvore” pode ser uma muda que imerge no asfalto ou a memória de uma viagem. “Não” pode ser “sim” a depender do contexto, enquanto um gemido pode vir após um tombo ou na rapidez de um prazer rotineiro. O mundo dos bebês — e o nosso — é tudo o que podemos ter dele. Ou, como escreveu um filósofo espanhol mal compreendido, é “eu e minhas circunstâncias”.

NOTAS DA PATERNIDADE IX

— Estranha sensação de que não há tanto mundo assim para dar conta da ansiedade em descobri-lo. Ou, mais ainda, de que todas as coisas estão presas a um punhado de lógicas inevitáveis — que tudo são muitíssimas variações delas. Para mim, é uma descoberta dolorosa. Para Flora, cada detalhe é magnífico.

— Tudo muda quando os bebês descobrem uma dessas lógicas e passam a correlacionar todos os movimentos. É a queda de um mistério. O beijo no rosto leva ao sorriso imediato da mãe. O botão apertado põe algo para funcionar e, enquanto a bola lançada afeta instantaneamente todo o lugar, é quase sempre certo de que o aceno a um desconhecido na rua será retribuído. “A” permanece bonito por si só, mas agora tem sentido mesmo quando faz “B” acontecer. O mundo fica mais previsível e intrigante ao mesmo tempo.

— (David Hume escreveu que não há como provar a existência das correlações e que a explicação mais possível para o encadeamento dos fatos é a nossa capacidade de percebê-lo. “O mundo, minha filha, é mais intrigante do que previsível”.)

— Diálogo com Ana Carolina no metrô: “Tive uma ideia: todo fim de ano vamos levá-la a um lugar que ela tenha visto antes nos livros da escola. Quando ela estudar História antiga, vamos para o Cairo. Filosofia ocidental, Atenas. Escravidão, Minas Gerais, Luanda, Cartagena, Londres. No ano do Século 20 vamos passar 20 dias em Havana — e outros 20 em Moscou. Meu Deus, como o mundo é enorme! Na Revolução Francesa vamos a Paris. Quando ela ler Cortázar, temos que ir ao Café London. Vamos começar a pesquisar cidades do Vietnã, do Japão, da África do Sul, dos países do Leste…”.

— E são tantas coisas, tantos movimentos, regras, possibilidades, limites, chegadas e saídas, pessoas e objetos, o mundo inteiro passando lentamente pela janela do carro, toda a maquinaria de padrões para se adequar, que os bebês desejam regressar para o começo de tudo: a barriga da mãe, o primeiro colo do pai, o afeto inexplicável das avós, o silêncio do quarto de dormir. É quando essa matemática da vida (sair do mundo-ir ao mundo-sair do mundo-mundo mistério) se estabelece, sempre com angústia. Para os bebês e para nós.

NOTAS DA PATERNIDADE VIII

— O mundo agora é um parque. Os objetos são todos brincáveis. Os detalhes são todos exagerados. Os barulhos, descobertas. Os acontecimentos, risadas. O chão é a oportunidade de andar. A natureza é menos uma filosofia e mais um amontoado de coisas que podem ser nomeadas com pouquíssimas palavras. As hostilidades nunca são notadas. Os outros estão sempre encenando seus personagens — jamais ensaiados, sempre vividos no instante do encontro. A mulher no ônibus presenteia com um chaveiro que estava à mão. O garçom do restaurante entrega uma bolacha fora do menu. Os transeuntes abrem o caminho para passar, enquanto os automóveis seguem uma lógica paralela de tráfego. Com um ano de vida, os bebês devem mudar de ideia definitivamente: preferem esse mundo à barriga da mãe.

— Todas as hostilidades ainda são símbolos compartilhados apenas com os pais. O mundo segue uma floresta. No metrô, um homem ao telefone se incomoda com um choro abrupto. No restaurante, o casal ao lado resmunga com a sujeira da mesa. Na fila do aeroporto, os rostos se deterioram quando observam o movimento da área de prioridades. Só há trocador de fraldas no banheiro feminino — quando há. Na escada, ninguém se coloca à disposição para descer o carrinho. Os amigos de ontem se afastam, e novos irrompem estranhamente no horizonte. Os pais fazem o percurso contrário e admitem, primitivos, que preferiam a barriga ao mundo.

— O dilema está em qual deles perceber. Há o encantado e o perverso. O maravilhoso e o cruel. O seguro e o perigoso. Há a criança e os pais, a barriga e o mundo. Ou então o dilema não é a percepção, mas a ação sobre ele — e é aí que tudo se confunde, porque encantar o cruel é tão ilusório quanto perverter o maravilhoso.

— Penso em tudo isso, ansioso, enquanto essa bebê parece oferecer uma resposta alternativa: encantar o mundo por conta própria. É assim que tudo passa a ser chamado de “árvore”, que os detalhes do dia são sempre descobertas imensas, que os objetos dos outros ficam sempre disponíveis — e, então, jamais são privados —, e que, destruindo qualquer hostilidade, todas as pessoas acabam surpreendidas com um sorriso.