Lambada complicada

por Vinícius Mendes

Em Belém (PA)

As piraíbas pulam dos barcos junto com os waraos. Ainda é madrugada em Belém. Não há sinos nem deuses — nem turistas nas margens do Ver-o-Peso —, só os pescadores e seus peixes, os waraos e seus desesperos, os urubus e seus restos. Do outro lado da baía, a noite insiste em escurecer tudo. As luzes das funerárias do Nazaré se encarregam de acender o dia. É quando, enfim, nossos dilemas mais profundos se revelam: a miséria, o desamparo, os índios, a violência, a terra, os racismos, o capitalismo tardio, a Amazônia, o bolsonarismo. São deles também que nossas respostas mais legítimas nascem: a comunidade, a cultura, os índios, a rua, o rio, a música, a vitalidade, a Amazônia, as relações cotidianas. Na grande floresta tropical do mundo, não há tropicalismo para explicar. Recorro à lambada complicada de Aldo Sena. Pilhas de madeira sobem obedientes pelas margens de Miramar. Uma mulher chora sozinha no templo de Sant’Ana. Do lado de fora, os guardadores de carros apostam que o Paysandu ganhará do Remo daqui alguns dias. Uma multidão espera pelo próximo barco para Abaetetuba enquanto outra embarca com calma para Carapajó. No caminho do Círio, as meninas ensaiam uma coreografia diante do celular, os casarões coloniais esperam ansiosos pela próxima procissão, um homem limpa o suor da testa antes de subir no ônibus. Do Maranhão irrompe uma chuva torrencial, construindo poças para as crianças de Guamá, mofando as varandas dos ricos e anunciando o fim da tarde no Norte até morrer, já garoa, na Guiana. No auditório da Universidade Federal do Pará alguém anuncia que a Amazônia é o futuro da humanidade. O outro lado da baía renova seu chamado: já é noite inteira na ponta definitiva do Brasil. As piraíbas pulam dos barcos junto com os waraos. É madrugada em Belém.